quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Degustação parte II

Se Manuel Bandeira em sua fase modernista traz a leveza das recordações da infância, nos fazendo sonhar e seguir para uma terra encantada onde tudo é possível... assim como João e Maria de Chico Buarque que eram obrigados a serem felizes... Clarice traz o peso da vida adulta, os questionamentos, os poréns, as entrelinhas...

"Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas..."


Do muito da sua obra genial, que nos faz mergulhar no sofrimento (e muitas vezes salvação) interior de suas personagens, escolhi uma crônica para postar que gosto muito, pois ela traz com leveza uma cena, uma constatação, um fato consumado, não como foi desejado, mas como foi acontecido... pois as vezes ela é assim, como é, e só nos cabe aceitá-la e vivê-la...


Por Não Estarem Distraídos






Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.

No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos...



GUSTAV KLIMT - O ABRAÇO

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